Diz aquele livro-filme-série que trair e coçar é só começar. Bem, espero que o mesmo aconteça com escrever. Aliás, sempre tive a necessidade de escrever. Crônicas, principalmente. Reais ou fantasiosas, sempre estiveram presentes na minha vida. Comicamente nunca senti a necessidade ou a capacidade de escrever um livro. Editar e corrigir, sim. Escrever, quem sabe um dia. Assim como plantar uma árvore. Acredite: com minhas habilidades jardineiras, não sei se daria certo, afinal de contas já consegui matar um cacto e uma planta carnívora. Então, desisti.
Mas a história de hoje é sobre… bem… sobre a morte. Aliás, é o tema que tem estado muito mais presente na minha vida do que eu gostaria, nos últimos dias. Muito, muito mais, eu diria. Mas hoje é uma quinta-feira, feriado, 2 de novembro. Dia de Finados. Entre tantas (outras) blasfêmias que eu poderia falar sobre a morte, de repente me peguei pensando: quando foi a primeira vez que eu flertei com a bendita? Apesar de ter recordações vagas de ter ido ao velório da Tia Rosa (1992) e do Tio João (1994), o que minha mente traz como primeira lembrança não são essas passagens. É aquela do “não faz mal pra ninguém”…
Desde que nasci aquela era a casa da minha infância – que pra mim sempre tinha sido cor-de-rosa até que dia desses descobri que antes era verde. Não era luxuosa. Mista. Um único banheiro – paredes pintadas de verde, com tinta lavável. Um portão que tinha um ruído próprio e único. Toda vez que alguém chegava ou abria aquele portão, não tinha como esconder. Segurança não era um problema. A porta da cozinha – a secundária que havia virado principal – sempre estava aberta. Raramente quando era fechada, principalmente no inverno, nunca era trancada. A única segurança era o sino que ficava atrás da porta e tocava quando abria. Blim Blim Blim… Os portões também sempre ficavam abertos. Da área e da garagem. De tão insegura, era o lugar mais seguro do mundo para mim. E nunca houve nada.
Durante toda uma infância, quem frequentava essa casa todas as manhãs era uma senhora. Não devia ter mais que 70 anos, mas no meu imaginário era muito, muito velha. E sim, parecia velha. Surrada pelo tempo, pela condição humilde e pelo filho. Em todos os aspectos. Um manco que volta e meia vejo por aí pagando com nariz empinado. Se as pessoas soubessem… aliás, nem eu sei. Eu era criança. Lembro apenas de poucos detalhes das histórias que ouvia sem querer. Era a Dona Maria.
Todas as manhãs Dona Maria abria aquele portão ruidoso, atravessava uma área comprida, de mais ou menos 10 metros, fazia uma pequena curva para a esquerda, andava mais uns 2 ou 3 metros, e chegava à porta. Aquela, da cozinha, do sino, que nunca estava fechada. Ia para tomar café! Todas as manhãs essa era a rotina dessa senhora. Tinha sua xícara própria (não era a única, todos tínhamos!). Chegava, cumprimentava, sentava-se em silêncio na primeira cadeira, da ponta, próximo à porta de saída. Recebia o café da minha avó. Pão, bolo, bolacha… o que todos estivessem comendo. Comia, agradecia, e ia embora. Todos os dias… por anos… décadas… não sei.
Dona Maria era vizinha de muro de fundos. A rua dessa casa era uma rua normal, asfaltada, com casas relativamente boas/normais. A rua debaixo, da Dona Maria, era uma rua pobre. De cascalho. Muitos buracos. Barracos. Para se chegar à essa rua, era preciso descer uma quadra que não dava vontade. Me lembro bem. Realmente não dava vontade. Morava com o filho, a nora, e as três netas – a mais velha do primeiro casamento – também vítima do pai. Era aposentada e recebia um salário mínimo. Me lembro claramente de histórias que minha avó contava que ela era obrigada a entregar, integralmente, o salário para o filho para as despesas da casa. “Ela adorava coxinha de galinha, mas Deus o livre se ela parasse na rua pra gastar cinquenta centavos para comer uma coxinha e esse dinheiro faltasse na entrega pro filho”, lembro como se fosse hoje da minha avó contando.
Tento não me enganar ao evitar dizer que me recordo de algo sobre ter sido proibida de tomar café na própria casa. Não vou dizer isso. Mas que tenho comigo que era isso… bem… acho que já pode perceber que é bem possível que seja isso mesmo. Desta forma, foi convidada pela minha avó para todas as manhãs passar para o desjejum. E assim foi. Também não gostaria de pensar que às vezes era a única refeição dela. Novamente… é possível.
Certa vez me lembro que Dona Maria havia ficado doente. Não sei o que tinha. Foi para o hospital. Algo na minha cabeça me diz que era o Pronto-Socorro. Acabou internada, um ou dois dias.
Em um Natal, meu pai havia presenteado a casa da minha avó com um telefone sem fio. Era moderno, com o monofone e um viva-voz integrado. A ideia era a de que minha avó pudesse levar o telefone junto com ela para o salão (minha avó era cabeleireira, e o salão era uma edícula que ficava descendo uma escada) para facilitar. Antes disso, toda vez que tocava o telefone, minha avó parava de atender suas “freguesas”, subia duas escadas, para então atender quem chamava (quando eu não estava, claro. Era uma diversão atender ao telefone e sempre saber quem ligava). Era uma base branca, quadrada, grande, com o botão do viva-voz laranjado.
Bem… almoçávamos. Minha avó, minha tia, eu, meu tio (irmão da minha avó) e a Tereza, a diarista. Não consigo me recordar da presença do meu avô, mas tenho quase certeza que estava presente. Aliás, a presença da Tereza me faz ter certeza que isso era uma quarta-feira – o temido dia da diarista: dia em que nada podia. Se pudesse, sequer aparecesse perto pra não atrapalhar. O telefone tocou. Eu atendi, no monofone.
– “Boa tarde. Por favor, o seu João Maria?”
– Peraí…
“Querem falar com o João Maria”, disse eu. O telefone da casa era o de recados do filho da Dona Maria. Minha avó disse que ia atender. No auge do viva-voz, disse que não precisava levantar, que podia atender da mesa mesmo. Liguei o viva-voz.
“Alô!”, disse minha avó. Nada do outro lado responder. “Alô”, repetiu ela, sem se levantar da mesa. Sem resposta. Ali ficou claro que o viva-voz não funcionaria de longe. Ela se levantou e foi até o telefone. Voltei pro meu lugar na mesa. Não sei por que cargas d’água ela não pegou o monofone, mas atender no viva-voz.
– “Alô”.
– “Alô, é do telefone do seu João Maria?
– Este é de recados. Ele é vizinho. Quer deixar recado?
(imagine que essas aspas são a versão que eu me lembro de tudo o que aconteceu)
– Aqui é do Pronto-Socorro. É para avisar que a Dona Maria faleceu.
Me recordo de olhar para a Tereza, que estava com uma cara espantada, e exclamou:
– “Jeeeeesus…”
Interessante como a mente da gente funciona. Essa é a lembrança completa que tenho. Não sei o que aconteceu depois. Não recordo. A cena pula para à noite.
Não sei que horas eram. Não sei por que razão minha avó me levou. Mas eu fui com ela no velório da Dona Maria. Foi na Capela São José. Chegando lá, ela estava lá, no caixão. Foi a primeira vez que eu flertei com a morte, de perto – que me lembre.
– “Pode chegar perto. Não tem problema”, disse minha avó. “Ela morreu, é como se estivesse dormindo. Não faz mal para ninguém”, falou. E eu o fiz. Cheguei perto do caixão – nem tanto assim. Olhei para ela. Não me lembro do que vi, mas não fiquei muito tempo. Também não me lembro do que mais pode ter acontecido.
Foi a Dona Maria. Minha lembrança de primeiro contato mais próximo com a morte. E a sua?