Foi uma terça-feira. 27 de setembro de 2011. Me lembro como se fosse ontem. Estávamos prontos para entrar no ar em mais uma edição do programa JB Urgente no rádio. Na época, estávamos na MZ Fm. Além de co-apresentar, eu também operava. Já estava sentado em frente à mesa de som, um ou dois minutos antes do programa iniciar, quando toca meu telefone. Era o Marcelo Martins (que rodava a cidade com o JB Móvel e entrava no ar durante o programa). “Dudu. Perdemos o Zeca!”
Era por volta de 1997, 1998, no auge dos meus 10, 11 anos, quando lembro piamente dos meus pais sintonizando o canal 02 para assistir, um dia, o Zeca. Um cara alto, magro, que sempre usava terno, era até meio boa pinta, e mostrava as ocorrências policiais que aconteciam em Ponta Grossa. Primeiro na TV Cidade, pioneira em TVs a cabo em PG – A TVC. Depois, passou a se chamar Canal 2. Por fim, TVM – TV Momento. Zeca foi um pioneiro. Um justiceiro que colocava na tv a cara do bandido, doesse a quem doesse.
Esta é a imagem do Zeca da minha infância. Encontrei no YouTube esse vídeo. Antes mesmo de assistir eu lembrava claramente dessa parede de tijolinhos. Diz que é um programa do ano 2000. Não posso precisar.
Em 2005, passei a produzir um programa na TVM, chamado Frente e Verso. Zeca, que tinha o dom de brigar por onde passava, já tinha deixado o canal há alguns anos e estava em outra tv (não me recordo se era a TV Vila Velha ou a TV Imagem). Dentro do programa havia um quadro chamado ‘Intimidade’, onde entrevistávamos algumas pessoas de relevância na cidade. Sugeri o nome do Zeca. Sempre houve um grande mito ao redor dele sobre sua coleção de armas e a coleção de ternos. Seria um bom entrevistado e uma boa pauta.
Pedi autorização para o Leo Pasetti, diretor-geral da TVM, para entrevistar o Zeca, apresentador da concorrência. Autorizado, liguei para o Zeca. Me apresentei como produtor do programa, expliquei que queríamos gravar com ele, etc, etc, etc. Zeca foi muito seco. Hoje sei que devo ter acordado ele de um dos sonos da beleza das 15h, mas topou. Na casa dele. Perguntei se ele concordaria em mostrar a coleção de armas e de ternos. Zeca já não era mais esse Zeca do vídeo. Já estava muito acima do peso, não era mais um galã, não era o único apresentador policial da cidade. “Não mostro nada!”, disse. Apenas agradeci, confirmei o dia e horário da gravação, e desliguei. EU ESTAVA CONVERSANDO COM O ZECA… da tv… da minha infância.
Na terça-feira da gravação, fomos a Evelyn (apresentadora), eu e o cinegrafista pra casa dele. Não me recordo se era o Ederaldo Fernandes ou o Julio Sach. O Zeca abriu a porta e nos recebeu. Sem mostrar os dentes, sem abrir um sorriso. “Opa, vamos gravar ali, podem sentar!”. Era um homem alto, gordo, que dava até um certo medo. Nem foi estúpido, nem gentil, apenas respondeu as perguntas que a Evelyn o fizera e fim de papo. Foi a primeira vez que eu vi e tive contato presencial com o Zeca. Ah… não mostrou nada mesmo, só confirmou que tinha uma coleção de armas e também de ternos. Como produtor de tv fiquei frustrado, afinal de contas, para a televisão o que vale é a imagem. Dizer que tem é a mesma coisa que nada.
(Nota do editor: Zeca cantando no estúdio da Rádio Central do Paraná, em ano desconhecido. Também encontrei no YouTube, em uma rápida busca com o nome ‘Zeca RP2’.
Em 2007, deixei a TVM e passei à coordenação geral de produção e programação da TV Vila Velha. Zeca era apresentador na emissora, tinha acabado de retornar ao Canal 16 depois de ter brigado com o De Paula, da TV Imagem. Campeão de audiência das 18h às 20h. Foi aí que eu realmente conheci o Zeca.
O áudio do locutor na vinheta de abertura ecoa na minha mente.
“ESTÁ ENTRANDO NO AR MAIS UM CAMPEÃO DE AUDIÊNCIA: ZECA, O REPÓÓÓÓÓRTER”
O Zeca era um cara solitário. Morava com o pai e a mãe. De vez em quando aparecia com uma namorada que, nunca conhecíamos, mas a gente sabia que só queria explorá-lo da maneira que pudesse. Não era rico, muito pelo contrário. Fazia o que podia para vender os patrocínios do programa e mantê-lo no ar. Tinha um gasto imenso com combustível para ir atrás de bandido, pagava repórter e editor por fora e ainda comprava o horário na emissora. Há anos bebia, o que fez com que ganhasse peso e perdesse a famosa coleção de ternos que não cabia mais naquele galã do final dos anos 90.
Tinha uma rotina complicada. Passava as madrugadas acordado acompanhando as ocorrências policiais. Às vezes cochilava num sofazinho na delegacia. Quase sempre, no carro. Dormia com um revólver na mão, afinal de contas, mexia com bandidos, recebia ameaças constantes. Revólver em uma mão, garrafa de vinho branco em outra, um dos olhos abertos pela própria segurança e ouvido atento à frequência dos ‘homens’. Descansava de verdade? Nunca.
Sempre quando chegava na emissora, todo mundo sabia – o fiel companheiro HT, rádio com a frequência da polícia, já chiava longe. A frase? Única e dele!
“MENINAS, CHE-GAY!”
À tarde, quando o crime descansa, Zeca esperava, principalmente, por acidentes de trânsito. Ia à emissora. Como não havia uma sala para isso, sentava no sofá da recepção, tomando o espaço de convidados e clientes que iam até lá. Roncava. Alto. Meu Deus, como roncava. Você consegue imaginar chegar em uma emissora de tv e encontrar um dos principais apresentadores na recepção, sentado, dormindo, roncando alto? Cena rotineira, isso quando não entrava na sala da direção e dormia por lá.
A BUNDA BRANCA
Se essa cena fosse a única que guardo na memória, estaria ótimo! Zeca, em tentativas de ser um sério brincalhão, hoje seria acusado de assédio moral e atentado violento ao pudor. Às vezes entrava na redação de jornalismo, às vezes em um estúdio em que o pessoal da técnica montava, às vezes na área de switcher e edição. Não importava se tivessem homens, mulheres, clientes, entrevistados. Zeca abaixava a calça de moletom deixando à mostra tudo o que ninguém queria ver. De frente e de costas.
Não era legal. Meninas, jornalistas, levavam na brincadeira e saiam de perto. “Ai, Zeca!” Os rapazes riam, alguns não gostavam. Às vezes chegava próximo demais de quem estava sentado, além do limite. Circulava pelos corredores com as calças arriadas. Era a mistura de brincadeira além do ponto com a bebida.
Chegava para apresentar o programa com seu ‘mamá’ – duas garrafas de vinho branco. Sim, sempre debaixo da bancada haviam garrafas de vinho que ele bebia como água durante as reportagens.
Passamos a ter problemas. Nós dois. Ele, como apresentador estrela. Eu, como coordenador geral de produções e programação da emissora.
ZECA EM REDE NACIONAL, NO CQC
Em 2010, perdeu a estribeira – o que me leva a acreditar que ele não conseguiria viver no mundo chato e politicamente correto de hoje. Um acadêmico de jornalismo da UEPG escreveu um artigo (não recordo se TCC, crônica ou o quê…) em que analisava todos os aspectos do programa. Conteúdo, cenário, qualidade, iluminação, apresentador… era um programa pobre, de baixíssimo orçamento – assim como todos os exibidos em TVs a cabo de Ponta Grossa. Então você pode imaginar a crítica pesada que veio.
Poucos meses antes eu tinha deixado a produção da emissora e estava morando em Curitiba, à frente de um programa chamado Boa Tarde Paraná, na Band. Então, não estava na cidade nessa ocasião, não sei os bastidores, apenas dou graças a Deus por não ter feito parte disso.
Zeca perdeu a estribeira ao ler, no ar, ao vivo, o texto do acadêmico. Ler, não! Comentar! Se você quiser assistir, também está no YouTube, basta procurar como “Ameaça ao vivo Programa RP2“. São três partes e você pode escolher assistir rindo da situação ou ficando revoltado.
Claro! O autor da crítica, os colegas, os professores, o curso de jornalismo da UEPG, o Sindicato dos Jornalistas, todos ficaram revoltados, afinal, Zeca, um apresentador policial de tv, ameaçou, ao vivo, o estudante e outras pessoas. Chamou de todos os nomes que conhecia. Elogiou, e muito, a mãe deste. Isso chamou atenção…
Atenção de quem? Dos produtores do CQC, veiculado em rede nacional pela Band. O quadro mais esperado do programa chamava-se Top Five, em que, numa época em que o YouTube e o Twitter não ficavam atentos às mancadas da TV, os problemas nas emissoras viravam piada. E Zeca tinha feito por merecer. Acabou no Top Five da TV Brasileira.
O vídeo do CQC também está no YouTube.
Sei que foi o caos, mas confesso que fico devendo o final da história. Não sei se foi feito um acordo, se seguiu pra Justiça, se o Zeca pegou o piá de jeito… não sei.
Sei que, quando voltei pra PG, na mesma função de coordenação, o RP2 tinha perdido meia hora de duração. Ia até 19h30 e entregava para o jornal ao vivo. Nossos problemas aumentaram. Zeca não se importava que, se atrasasse 5 minutos o jornal, atrasaria toda a grade de programação. E também a do dia seguinte, quando da reprise. Isso, em tv, é o caos. Mas Zeca não atrasava apenas 5. Às vezes 7. Às vezes 10. Às vezes 15. E eu perdi o controle.
Depois de muitas conversas com o Zeca, determinei ao Renan Almeida, que operava o master, que encerrasse o programa pontualmente às 19h30. Subisse créditos, cortasse microfone e seguisse com a grade. No primeiro dia, fiquei na emissora até mais tarde, esperando o derradeiro momento. Estava no master, ao lado do operador. Quando deu 19h30, dei a ordem de corte. O programa acabou. Não fiquei para ver o estrago. Soube, no dia seguinte, que meu nome sofreu sérias ameaças por parte dele, que gritava e urrava de ódio ao sair do estúdio e ir até à técnica.
No dia seguinte, lá estava o Zeca, no departamento administrativo, pedindo minha cabeça, me ‘elogiando’ para todos, ameaçando sair da tv. Foi até à direção. No fim das contas, todo mundo sabia que o Zeca estava errado. Até mesmo ele, sabia. Ficou semanas sem falar comigo, mas falando muito sobre mim, para quem quer que fosse. No segundo dia, terminou no horário. No terceiro, também. No quarto dia, tentou atrasar um pouco, mas quando viu que o microfone tinha sido cortado e os créditos começaram a subir, fechou a cara (ainda ao vivo) e deu tchau com a mão pra quem o assistia. Por fim, o jornal passou a entrar no ar no horário. Eu, por outro lado, passei a ser o vilão da história para o Zeca. E tudo bem, aceito isso como ônus da profissão e do cargo.
Passado um tempo, ficou ‘tudo bem’ entre nós. Voltamos a nos falar. Ele, respeitando meu cargo na emissora, e eu, respeitando ele como líder de audiência e grande comunicador que era. E a vida seguiu.
Não sei quem é o autor dessa foto, mas este era o Zeca do fim.
PERDEMOS O ZECA
Quando ouvi essa frase do Marcelo Martins, tomei um banho de água fria. Prestes a entrar no ar no rádio, ficamos sem condição. Entramos ao vivo, demos a notícia, e pedimos desculpas. Encerramos o programa e deixamos músicas mais calmas em respeito à memória do Zeca.
Corri para a emissora. Cheguei por volta de 9h30. A reprise do último programa do Zeca começava às 11h. Com a notícia se espalhando, eu sabia que este programa, e o ao vivo, das 18h, seriam as maiores audiências do ano. O que fazer?
No estúdio menor, o cenário do RP2 ainda estava montado, do dia anterior. Pedi ao João Barbiero, diretor-geral da emissora, que entrasse no ar, falasse algumas palavras, desse a notícia no próprio cenário, e convidasse a todos os telespectadores a assistirem ao último programa apresentado pelo Zeca. Ao Franciel Leandro, se não me engano com o Thiago Correa, pedi que dessem uma mexida na luz, deixando o cenário mais sombrio para a entrada do João. Preciso dizer… ficou lindo no ar, fúnebre. Com as palavras do João, foi o início de uma despedida especial. Artística. Do jeito que o Zeca detestaria.
Para o programa das 18h, sabia que precisava fazer algo especial. Foi um trabalho de equipe impecável. A emissora, praticamente, parou. Todos os editores de vídeo pararam tudo o que tinham pra fazer e passaram a revirar DVDs antigos buscando as aberturas, momentos hilários, momentos tristes, chocantes, etc. Fizemos alguns VTs muito legais sobre a história do Zeca na TV. Operadores de master ajudavam a procurar em arquivo o que era possível. O departamento de jornalismo cobriu todo o velório e o sepultamento. A produtora do JB Urgente (não me recordo se na época era a Ana de Oliveira ou a Maiara Clausen) foi fundamental em me auxiliar a marcar todos os convidados para o ao vivo, no cenário do próprio Zeca. Todos os apresentadores da casa compareceram, amigos, alguns parceiros comerciais. O jornalista Marcelo Ferreira apresentou esse especial de 1h30 com brilhantismo. Todos contaram passagens que tinham tido com o Zeca, momentos engraçados, pesados, o que achavam… as reportagens mostraram toda a despedida e os vt’s deram o ar de saudosismo. Me senti orgulhoso. Do programa, do trabalho, da equipe… acabava ali a história do Rp2.
Duas ou três horas após a notícia da morte do Zeca, um rapaz que filmava externas para ele, chamado Noredim, já falecido, veio conversar comigo na tv porque queria negociar para assumir o horário do Zeca. Fiquei chocado. Desbaratinei o rapaz. Precisava pensar no que fazer em termos de programação, mas ele, com aquela atitude, jamais teria aquele programa, sob minha batuta. Foi ter um programa na concorrência. Sem relevância, sem audiência, sem credibilidade.
Semanas mais tarde, surgiu o programa COP – Canal de Ocorrências Policiais. Apresentado pelo Repórter Jeferson Cascavel, cria do Zeca no mundo policial. Foi unânime a decisão: o RP2 morreu junto com o Zeca. Cascavel manteve o programa no ar até o fechamento da TV Vila Velha, no final de 2020.
Apesar de tudo, respeito a história e, até, confesso: gostava do Zeca! Sempre quando ouço ‘Sweet Child ‘O Mine’, do Guns ‘N Roses, lembro dele. Era a música preferida, que tocava no encerramento de todos os programas.
Não fui ao velório e ao enterro do Zeca. Estava trabalhando. E mesmo se não estivesse, não teria ido. Ele não teria gostado de me ver lá e nem eu de ver ele deitado em um caixão.